Entrei no banco no último minuto do último dia de pagar a última parcela do IPVA. Não havia escapatória, a fila era enorme e a minha única opção. Não bufei, não reclamei, eu só me acomodei e esperei. A fila nunca mais que andava e por distração passei a observar os outros. Um homem falava tão alto ao celular que quase todos voltavam a atenção a ele. Tentei me desligar desse alvo fácil procurando me ater aos imperceptíveis. Um rapaz tentava se livrar dos infindos curtos comentários de uma senhora que o precedia na fila. Uma mulher se sacudia inteira e produzia estalos com a boca em um protesto discreto e indignado. Uma menina, que estava a uns três pacientes clientes depois de mim, tentava esconder os pés enquanto eu olhava sua sandália. Eu observava sem disfarce um a um. Continuei assim até que a tediosa observação foi interrompida por vozes bem colocadas e envelhecidas. As vozes vinham da pequena fila de idosos à minha esquerda. Duas senhoras. Pareciam ser amigas ou pelo menos conhecidas de algum tempo. Porém, uma não sabia muito da vida recente da outra e se perguntavam sobre as próprias, os maridos, os filhos... A mulher que mais contava coisas falou de seus filhos, que já tinha um neto de 6 meses e que seu marido havia melhorado um pouco, mas continuava doente, assim ela contava tudo. A outra mais perguntava do que contava coisas. Enquanto essa mais falante dizia tudo da vida dos filhos e neto, a outra perguntou onde o tal filho que já é pai mora. A faladora respondeu sem maiores emoções: neste prédio aqui da frente. Imediatamente um brilho surgiu no olhar da outra senhora que, até então, perguntava mais para continuar a conversa do que para saber realmente. Um sorriso se abriu e ela revelou com uma voz cantada e jovem: Eu sou apaixonada por esse prédio. A animação tomou conta dela e disparou a perguntar do prédio, sem pouco se importar com o filho ou o neto da outra. O rosto mudara certamente e qualquer um poderia perceber que não era mais a mesma senhora que falava, era uma parte dela que parecia não sair de casa há muito tempo, seus sonhos.
Eu imediatamente olhei para a porta do banco tentando alcançar com o olhar o tal prédio. Não conseguia me lembrar de nenhum prédio que pudesse ser o sonho de alguém ali naquela rua movimentada, confusa e sem grandes pretensões arquitetônicas. Enfim, enxerguei uma nesga de um prédio de uma cor sem nome e de varandas medíocres. Seria essa a paixão daquela senhora? Seria esse o motivo daquele brilho? Meu momento de ser atendida chegou e logo saí ansiosa para ver qual era realmente o tal prédio sonho. Quando saio do banco percebo que havia somente um único prédio residencial ali. Bom, só pode ser ele e de fato as descrições batiam, mas eu não conseguia entender. Um prédio tão sem jeito e sem charme que eu jamais, nestes anos todos de bairro, reparei na sua presença. Passo ali ao menos uma vez por semana e ele nunca se insinuou para mim, nem se quer me incomodou. Passei tantas vezes por aqui e o ignorei em cada uma delas, sem saber que se tratava de um sonho. Um sonho capaz de iluminar uma fila de banco. De cabeça baixa fui caminhando até em casa e pensando: Por quantos sonhos não passo diariamente e sem perceber os ignoro? Ou pior, quantos sonhos não menosprezo? Ou ainda, quantos não ignoram os meus sonhos?
Muito legal! Gostei da motivação da crônica. Ontem também estive na fila de banco, não no último minuto, mas na última hora. Essa fila daria uma boa crônica a respeito do carnaval com base no que as pessoas conversavam: viagens, motoristas de taxi, turistas,. Taí, você me deu uma inspiração. Beijos, Mari.
ResponderExcluirEngraçado como as vezes coisas que pra gente são tão pequenas podem mudar de significado. Gostei
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