Aspecto, cadavérico; bolsa, velha; meias grossas, cor de rosa; tênis, azul. O último se esforçava, em vão, para combinar com o casaco de mesma cor, que vinha por cima da blusa lilás. A bermuda amarelada, desajeitada, ordinária e surrada não conseguia disfarçar o corpo franzino. No rosto cavado – que não me lembro de antes, nesses três meses de aula, já o ter focalizado - moravam três antipáticos fios, que esboçavam um buço, e espinhas, muitas e secas por toda parte. O cabelo era trançado, mas sem a pretensão de ser um penteado. Um cabelo de tanto faz. Sentava em uma carteira na minha diagonal esquerda. Uma mulher na faixa dos 20, sem vaidade alguma, logo, deve se ocupar somente daquilo que realmente interessa. Não é como eu, fútil. Assim pensei. Ela me fez sentir que somos diferentes. A aula prosseguia; eu anotava tudo; e ela, bom, não me importava mais.
Quando tudo parecia tranqüilo, eu aqui e ela lá, como água e vinho, Brasil e Japão, Flamengo e Vasco, uma dúvida surge. Eu, boa aluna, levanto o braço, o professor me atende: qual sua dúvida? Todos se viram, inclusive ela, a mulher diferente de mim, e, sem me poupar de nada, ela me mostra seu lado esquerdo. Estarreço. Tem uma flor no cabelo dela! Uma flor bonita, que poderia estar no meu cabelo. Observo melhor e... É igual a minha! Tudo vem abaixo. Dá-me um nó na garganta e olho, e olho, e olho. Nada mais faz sentido. A minha respiração acelera e sinto que me aquece. Devo ter enrubescido, arregalado os olhos, pulsado, tremido. Estou constrangida, de verdade. Então, eu, sem mais coragem de manter o meu famoso olhar altivo, inclino a cabeça para baixo e com voz embaraçada digo: desculpe-me, não foi nada, pode prosseguir professor. Todos se voltam para frente e a aula prossegue normalmente. Menos para mim. Olhava à minha volta e não havia mais nada de normal. Em uma fração de segundo, mudou o cenário. O professor, os outros alunos, eu, o barulho do ventilador, tudo, tudo havia mudado. Eu não encontrava mais posição na cadeira e o que o professor dizia, já não tinha sentido. Não conseguia mais fazer idéia de meu porquê de estar ali, quem eram aquelas pessoas, qual era a estação do ano, se era manhã ou tarde, ou se havia almoçado. Aquela flor estava ali, como uma rosa na secura do sertão. Tento me restabelecer, arrasto a mão até a cabeça e, discretamente, retiro a minha flor e guardo-a na bolsa. Olho para frente e procuro esquecer aquilo, mas não consigo.
Uma hora se passa e ela está lá. Quieta, mas desviando minha atenção, tirando meu sossego. Irresponsável, provocadora. Ainda não consegui me concentrar na aula. De repente, meu desconcerto é interrompido por um barulhinho, que não me é estranho. Aquele sonzinho me despertou. Único, curto, preciso e baixinho, me lembrava alguma coisa familiar. Sigo meu instinto auditivo e novamente estou olhando para a mulher. Ela está com uma caixinha na mão e o barulhinho veio dali. A caixinha também me é familiar, mas os seus dedos compridos não me permitem ver exatamente do que se trata. Continuo observando seus movimentos serenos. Ela puxa algo de dentro da caixinha e estica. Espicho a cabeça mais um pouco e vejo... É um fio dental! Pronto, respiro aliviada. A sensação, o incômodo, tudo passa e eu volto a prestar atenção à aula. Enquanto a aula acontece, ela limpa os dentes. Agora entendo, ela é diferente. A flor ali não é nada.